O bicho mais feroz
O dia amanheceu, era verão,
a tomar seu café lá no fogão
o seu Tonho dizia para Solidade:
- O sonho muitas vezes é realidade,
e esta noite eu sonhei, quando dormia,
que um cachorro na roça me mordia.
Por aqui hoje o dia vou passar
e não vou para a roça trabalhar.
Respondeu Solidade: - Isto é besteira!
O sonho não é coisa verdadeira.
E se o bicho morder você se atrasa
tanto faz lá na roça como na casa,
o melhor é você não pensar nisso
e ir pra roça cuidar do seu serviço.
O seu Tonho saiu dando cavacos
com o seu cavador cavar buracos.
Felizmente o coitado não foi só
pois o filho o seguiu no mocotó.
No primeiro buraco que cavou,
para ele o perigo não chegou.
Porém quando passou para o segundo,
viu estrelas brilhando no outro mundo.
Uma feia raposa sem respeito
agarrou-lhe na mão de certo jeito,
e rosnando raivosa, arrepiada,
com os dentes lhe dava safanada.
O coitado sozinho a pelejar
e a raposa filada sem soltar.
Sem poder defender-se do perigo
o seu Tonho a gemer disse consigo:
- Bicho doido dos diabos, tu me pagas!
E gritou pelo filho: - Venha, Chagas,
venha logo, depressa, em meu socorro,
que estou preso nos dentes de um cachorro.
Quando Chagas ouviu, disse de lá:
-Vou fazer um cigarro e chego já.
E fazendo o cigarro, de repente,
foi provar que era um filho obediente.
Chagas vendo a raposa foi dizendo
pra seu Tonho poder ficar sabendo:
-Ô papai, me desculpe, por bondade,
o senhor tem sessenta anos de idade
e por fora daqui já tem andado,
pois já foi passear em outro estado.
No roçado um só dia nunca falha
e se em casa tiver também trabalha,
torce corda, faz peia de capricho,
aparelha cangalha, faz rabicho,
faz cabresto e faz mais alguma coisa.
E ainda não conhece uma raposa?
Eu lhe digo e o sinhô sei que combina,
isso aí é raposa até na China.
O seu Tonho, já quase esmorecido,
respondeu para o filho, aborrecido:
-Ou raposa ou cachorro ou qualquer raça,
por favor, mate logo esta desgraça.
Foi que o Chagas cortando um grosso pau
acabou com aquele bicho mau.
Não podendo o ferido ter demora,
para casa voltou na mesma hora.
E achando que a vida estava em risco
foi chegando com ar de São Francisco.
E dizendo pra sua boa esposa:
-Veja aqui o que fez uma raposa.
Solidade ficou bastante aflita.
Porém, como em Jesus muito acredita,
respondeu: - Você ainda foi feliz.
Se a raposa mordeu, porque Deus quis,
e se fosse na casa também vinha,
o mordia e levava uma galinha.
Tudo aquilo seu Tonho ouviu calado,
disfarçando que estava conformado.
A Tosinha, a Canguinha, a Margarida,
reparando o chamboque da mordida
aplicaram remédio bem ligeiro
e foram dar risada no terreiro.
O seu Tonho no seu comportamento
passou dias fazendo tratamento,
desfrutando café, cigarro e bóia,
paciente, de braço na tipóia.
E o Chagas, por causa do acidente,
passou dias folgado, bem contente,
pois quando ia pra roça era sozinho,
muitas vezes voltava do caminho.
Felizmente, o seu Tonho está curado,
porém nunca deixou de ter cuidado.
E ele até com razão faz uma jura:
não tirar sua faca da cintura.
Outro dia, com o Souza conversando
em diversos assuntos e falando
sobre os bichos ferozes do país,
ele disse, mostrando a cicatriz:
- Pode crer, meu prezado amigo Souza,
não há um tão feroz como a raposa.
Referência bibliográfica:
Patativa do Assaré (Antônio Gonçalves da Silva)
"Filho de gato é gatinho", "Vicença e Sofia ou O castigo de mamãe", "O bicho mais feroz", "O boi zebu e as formigas" e "A
realidade da vida". In: Ispinho e fulô. 1. ed. Fortaleza, Secretaria de Turismo e Desporte/Imprensa Oficial do
Ceará, 1988.
"Bertolini e Zé Tingó" e "Aposentadoria de Mané do Riachão". In: Aqui tem coisa. 1.ed. Fortaleza, Ed. da Universidade do Ceará
(UEC)/RCV Editora e Artes Gráficas Ltda., 1994.
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