Casamento e divórcio da lagartixa
Não há quem viva no mundo
que não deseje gozar.
Desde o velho à criancinha
quer a vida desfrutar
e tudo aspira o amor,
porque viver diz:— Amar.
Disse a Lagartixa um dia:
—Eu só ficarei solteira
se não achar nesta terra
um diabo que me queira.
Procurarei dentre as casas
até o largo da feira.
Mamãe, com quarenta anos
tava ficando "titia",
mas tomou uma cachaça
da mais forte que havia,
foi a feira, achou o papai,
voltou rica neste dia.
—É o que eu faço também...
Tomo um dia uma cachaça,
vou para a porta da rua,
ali nem mosquito passa.
E só volto com um marido
ou emprestado ou de graça.
Mamãe dizia uma coisa
que eu achava muito exato:
"Quando faltar o cachorro,
se pode caçar com gato.
E não tendo um desses dois,
então bota a mãe no mato".
Uma tia disse a ela:
—Minha filha não se veixe!
Respondeu a Lagartixa:
—O que vier na rede é peixe.
Eu vou procurar marido,
se achar muito trago um feixe.
Lagartixa então saiu
vendendo azeite às canadas.
Encontrou com o Calango,
uma alma dispersada,
que andava com a moléstia
procurando namorada.
O Calango suspirava
pela vida de casado.
A Lagartixa também
tinha se desenganado,
que não acharia nunca
quem fosse seu namorado.
Quando o Calango viu ela,
ficou todo animado.
Disse consigo: já sei,
hoje volto transformado...
Também disse a Lagartixa:
Já encontrei namorado...
Cumprimentaram-se ambos
com grande contentamento,
o Calango com requebros,
ela com derretimento.
Com cerimônia um do outro,
não trataram o casamento.
Ela perguntou-lhe apenas
como é que ele se chamava.
Ele perguntou a ela
onde o pai dela morava,
se a mãe não tinha ciúme
quando ela passeava.
Respondeu a Lagartixa:
—O Papai faz cara feia.
Tem dias que ele se zanga,
jura de meter-me a peia,
mas saio na lua nova
e volto na lua cheia...
Era o namoro rombudo...
ela chamava neguinho,
Calango, flocava a cauda,
pedia a ela um beijinho...
A Lagartixa dizia:
Espere aí, meu anjinho!
O velho às vezes dizia:
—Eu quero sinceridade.
A mãe dela então dizia:
—Meu velho, isto é bestidade,
rapaz brincar com uma moça
são coisas da mocidade.
Você já está esquecido
do tempo do nosso amor?
Eu era como uma abelha,
você, como um beija-flor!
Eu desfrutava em seus braços
o mais suave calor!
A mãe afrouxava ela,
sendo uma moça solteira.
Calango dava-lhe o braço,
iam passear na feira.
Se a fome não os apertasse,
passavam a semana inteira.
O pai de nada sabia,
porque vivia por fora.
Calango meteu-se dentro
como quem diz: — É agora!
O velho de longe assim
não vê se a filha namora.
Ora, o pai da Lagartixa 🦎
era um pobre analfabeto,
entendia que Calango
fosse o mulato correto.
Quando veio abrir os olhos,
foi tarde, já tinha neto.
E foi o velho lagarto
se queixar à autoridade,
dizendo que o Calango
fez-lhe aquela falsidade:
desonrou a sua filha
sendo de menor idade.
Nesse tempo o Cururu
era subdelegado.
O velho foi lá chorando
porque andava injuriado.
O Cururu disse:— Volte,
que você será vingado...
O Calango conhecendo
do jeito que a coisa ia
e sabendo que a justiça
com certeza o prenderia,
disse:— Uma retirada
é sinal de valentia.
Aí saiu o Calango
pelo mundo foragido.
A lagartixa também
se pôs ao fresco escondido,
tanto que quando voltou
já foi com outro marido.
Pensou consigo o Calango:
"Não devia ser ingrato,
e não voltando dali
seria como de fato,
e mesmo era cobarde
se não saísse do mato".
A Lagartixa 🦎 o amava
com tanta sinceridade,
pois desde a primeira vista
que lhe tomou amizade.
E assim era Calango
baixa a dignidade.
Quando o Calango votou
achou um "rolo" tremendo.
A Lagartixa 🦎 lhe disse:
—Fiz uma que me arrependo.
Já dei com os burros n'água,
mas deixe estar que me emendo.
A Lagartixa por isso
levou três surras de peia;
Calango também passou
oito dias na cadeia,
para deixar o costume
de namorar filha alheia.
Casou-se sempre o Calango,
embora fosse obrigado.
Botou um grande negócio,
tratou de ser homem honrado.
A Lagartixa em três dias
vendeu dali tudo fiado.
O Calango comprou tudo
fiado ao Camaleão,
entregou à Lagartixa,
foi tratar de uma eleição.
Quando voltou não achou
nem onde tinha a armação.
Até o próprio balcão
ela o tinha empenhado,
deu para embrulhar sabão
o livro do apurado;
os utensílios da venda
tudo já tinha voado.
O Calango com aquilo
entristeceu de repente,
exclamou:— Mulher danada,
você me deixou doente.
Me diga agora que conta
presto eu ao seu parente?
A Lagartixa 🦎 lhe disse:
— Não precisa se vexar,
seu primo Camaleão
por isso não vai lhe dar.
Dê-lhe uma satisfação,
diga que vai arranjar...
O Calango respondeu:
—Eu não passo por velhaco...
Respondeu-lhe a Lagartixa:
—Você ainda dá cavaco?
Os calotes do comércio
hoje se chamam "buraco".
Então o Calango disse:
—Veja se bota o almoço...
Respondeu-lhe a Lagartixa:
—Tenha paciência, moço,
à falta de dois vinténs
eu ontem comi ensosso.
E se você voltou liso,
dana-se agora o negócio,
pode arrumar logo a trouxa
e vamos abrir divórcio.
Caixeiro sem capital
só nos lucros terá sócio.
Marido sem nem um X
não quero, que não me acode,
não tem que ficar zangado
nem que puxar o bigode,
mulher hoje em dia é luxo
e luxo só tem quem pode.
Mamãe dizia ao papai:
"Se estiver aborrecido,
me avise logo com tempo,
pode ficar prevenido,
da forma que eu mudo a saia
mudo também o marido".
E note bem que já fez
mais de mês que estou casada
e não agüento mais
esta vida assim privada.
Trabalhar para comer?
Vote, seu Zé, vai lá nada...
O Calango disse a ela:
—Mulher, não fale em divórcio!
Respondeu-lhe a lagartixa:
—Você parece um beócio...
Escolha, de duas uma:
ou deixá-lo ou dar-lhe um sócio.
Agora estou conhecendo
que a vida é uma pilhéria,
antes viúva contente
do que conservar-se séria.
Quem adotar meu sistema
nunca se vê na miséria.
Com quatro coisas no mundo
eu tenho me encabulado:
com candeeiro vazando,
com fogão desmantelado,
com almofada sem bilros
e homem desempregado.
Disse o Calango:— É bonito
você se divorciar,
abandonar seu marido
e o povo a censurar,
seu nome ficar na rua
gato e cachorro e falar.
Disse então a Lagartixa:
—Deixe queimarem meu nome.
Eu não quero é que se diga:
"esta danada não come",
ou que se afirme: "é honrada
mas ta morrendo de fome".
O Calango ali ficava
que nem podia falar,
quando ouvia ela dizer
"eu vou me divorciar",
puxava tanto as barbas
que só faltava arrancar.
Dizia ela:— Rapaz,
não se vexe, isto é asneira.
Existe duas farturas:
é de mulher e poeira,
debaixo de qualquer ponte
você acha quantas queira.
Mulher feia e homem ruim
isto todo dia aumenta,
a fartura já é tanta
que o mundo não se agüenta.
Eu fui ver se achava um,
encontrei mais de quarenta.
Disse o Calango:—Meu pai
tão bem casado viveu!
A Lagartixa lhe disse:
— Então era como o meu...
Mamãe tinha dez maridos,
nove foi papai quem deu.
O namoro suja o nome,
eu conheço que é exato.
Mas eu não tenho dinheiro,
namoro cachorro e gato,
do ar só deixo urubu
e da terra, carrapato.
Por favor ouça mais essa,
se não for verdade, diga,
capricho familiar
resulta sempre a intriga,
honestidade não veste,
honra não enche barriga.
O Calango disse a ela:
—Minha mãe viveu honrada,
se acabou nua e com fome,
porém nunca foi manchada... Respondeu a Lagartixa:
Também morreu desgraçada.
Minha avó morreu velhinha,
porém no lugar que ia
quinze, vinte namorados
todas as vezes trazia,
fora muitos que ficavam
que meu avô não sabia.
E aquela minha prima
você sabe ela quem é,
casou com Tijuaçu,
tem filhos de jacaré.
Mas nem por isso o marido
ainda perdeu-lhe a fé.
Disse o Calango:— Você
só pensa no que é ruim...
Respondeu-lhe a Lagartixa:
—Meu avô dizia assim:
"O mel por ser bom demais
as abelhas dão-lhe fim".
Disse o Calango: —Já sei,
você não quer mais ser minha.
A Lagartixa lhe disse:
— Quando nasci foi sozinha.
Pegar três e soltar um,
disso já estou cansadinha.
O Calango perguntou-lhe:
—Tens algum no pensamento?
Respondeu-lhe a Lagartixa:
—Antes do meu casamento
eu já andava aos abraços
com seu primo Papa-vento.
Calango então ficou
de tudo desesperado,
exclamou em alta voz:
—Papa-vento desgraçado!
Não respeitou a mulher
com quem eu era casado.
Entrou logo numa loja
comprou um grande cutelo,
ferro que não envergasse
nem se quebrasse a martelo.
Mandou chamar Papa-vento
para bater-se em duelo.
Limpou as armas bem limpas
e amolou o facão,
escovou o bacamarte,
apertou o cinturão,
muniu bem a cartucheira
e seguiu na direção.
Levou como testemunha
o Besouro-mangangá,
e avisou o Papa-vento
que se preparasse lá...
Disse o Papa-vento:—Diga-lhe
que pode vir, estou cá.
Chegou então Calango
e falou ao Papa-vento:
— Um de nós descerá hoje
ao chão do esquecimento,
eu já dei terminações
até do meu testamento.
Então disse o Papa-vento:
—A vida é quase uma peta.
O risco que corre a broca
corre também a marreta;
eu não sou como sagüi,
para morrer com careta.
Então disse a Lagartixa:
—Quero ver quem cai primeiro.
O que ganhar Já se sabe
que foi o melhor guerreiro.
Eu corro os bolsos do morto
para ver se tem dinheiro.
Calango atirou primeiro,
Papa-vento se livrou,
naquele mesmo momento
nele também atirou;
Calango era muito destro
do tiro se desviou.
Trocaram mais quatro tiros,
porém nenhum atingiu.
O Papa-vento puxou
pela espada e partiu,
logo no primeiro encontro
a Lagartixa sorriu.
Disse:— Bravo, Papa-vento!
Gostei de ver teu sistema,
bater logo a ferro frio
inda que chore ou gema.
Naquele momento vieram
o Gato e a Seriema.
O Papa-vento correu
e subiu por um cipó;
a Lagartixa, coitada,
essa ficou que fez dó.
A Seriema comeu-a
para não deixá-la só.
O Papa-vento saiu
que parecia um corisco,
subiu num cipó e disse:
—Eu aqui não corro risco.
O Gato foi ao Calango
e fez dele um bom petisco.
A Seriema pegou
a Lagartixa no meio,
saboreou-a no bico
e ficou com o papo cheio.
Isso resulta à pessoa
que sorri do mal alheio.
Papa-vento olhou de cima.
Disse:— Couro velho espinha,
eu ia me desgraçando
no namoro dessa bicha,
o diabo é quem quer mais
namoro de lagartixa.
O Calango se acabou,
eu quase que tenho fim,
Lagartixa tão caipora
nunca tinha visto assim.
Mil diabos a carreguem
para bem longe de mim.
D'agora em diante sei
quanto custa namorada,
logo a primeira que tive
foi assim estuporada.
A segunda, com certeza,
inda será mais danada.
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O paraibano Leandro Gomes de Barros nasceu em Pombal,
na Paraíba, em 19 de dezembro de 1865. Começou a
escrever folhetos em 1889 e não parou mais, tendo
publicado mais de mil histórias. É autor, entre outros
títulos, de História da Donzela Teodora, O homem que come vidro e O roto na porta do nu. Faleceu no Recife, em 4 de março de 1918.
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